O judeo-cristianismo
identifica o mistério e Deus na história do povo, particularmente, na história
dos oprimidos. Por isso afirma um Deus histórico, o Deus de Abraão, de Isaac,
de Jacó, dos Profetas e de Jesus de Nazaré. O Deus da história apresenta-se
como um Deus ético. Por isso a mística bíblica é uma mística dos olhos abertos
e das mãos operosas. Piedoso e servidor do Deus histórico é aquele que se
compromete com a justiça, toma o partido do fraco e tem a coragem de denunciar
a religião do puro louvor sem a mediação do amor ao próximo.
Deus
é experimentado na luta dos oprimidos do Egito e dos cativos na Babilônia. Dele
se diz que escuta o grito do oprimido e abandona sua luz inacessível, desce
para colocar-se do lado dos injustiçados (cf. Ex 3,4). Os que se sentem
abandonados, os órfãos e peregrinos, devem saber que seus direitos são direitos
de Deus (cf. Dt 10; Jr 22,15; Pr 22,22-23), pois abandonados e não tendo
ninguém para socorrê-los são socorridos por Deus mesmo. Por isso se afirma que
“o opressor do pobre injuria o Criador, mas honra a Deus quem se compadece
dele” (Pr 14-31). A obra do Messias é libertadora, na medida em que consiste em
fazer justiça aos desamparados e visa inaugurar a nova ordem de paz e fraternidade
a partir dos últimos (cf. Is 11,4-9; 42-1-4).
Ao
lado desta mística do compromisso ético, porque Deus se encontra na ação justa
e na relação amorosa para com os outros, existe também uma mística da
contemplação. O universo todo foi criado por Deus. Os seres humanos (homem e
mulher) são lugares-tenentes de Deus, representantes divinos em seu ser e em
seu agir. Em tudo podemos contemplar a marca registrada de Deus impressa nas
criaturas e na realidade espiritual e corporal do ser humano. Tal saboreamento
de Deus na obra da criação e no trabalho humano permite a louvação e a
exaltação da alma que vibra e se entusiasma.
O
Novo Testamento prolonga e radicaliza a mesma linha da experiência de Deus na
história. Afirma que Deus entrou totalmente na realidade humana, pois se
humanizou no judeu Jesus de Nazaré. A partir de agora, o lugar de encontro de
Deus será preferentemente na vida humana, particularmente, na vida dos
crucificados. Esse Deus não se encarnou na figura do César em seu trono, nem do
Sumo sacerdote em seu altar, nem do Sábio em sua cátedra, mas na figura dos
oprimidos e excluídos que acabam fora da cidade e crucificados. O mistério
transcendente que se encarnou se encontra crucificado. Grita na cruz por vida e
quer ressuscitar.
A
ressurreição de Jesus crucificado quer reafirmar o primado da justiça e da
vida, anunciar a sacralidade da insurreição contra a ordem deste mundo e revela
a promessa feita a todos os injustamente penalizados de que eles também
herdarão a plenitude da vida, quer dizer, a ressurreição. Pois Jesus se fez um
deles. Seu destino feliz é destino prometido a todos os que tiveram sorte
semelhante àquela de Jesus.
A
mística cristã, porque é histórica, orientar-se-á pelo seguimento de Jesus. Tal
propósito implica um compromisso de solidariedade para com os pobres, pois
Jesus se contou entre eles e pessoalmente optou pelos marginalizados das
estradas, do campo e das praças das cidades. Implica um compromisso de
transformação pessoal e social, presente na utopia pregada por Jesus, do Reino
de Deus que começa a realizar-se na justiça dos pobres e a partir daí para
todos e para toda a criação.
O
seguimento de Jesus pela proposta nova que proclama introduz conflitos: há os
que, por causa desta proposta, se sentem prejudicados em seus interesses e
reagem através do uso da violência simbólica ou física. Por isso o seguimento
pode comportar perseguições e até martírio. Mas tudo é assumido jovialmente
como preço a se pagar pela solidariedade para com os sofredores e para com o
Servo sofredor Jesus. O cristão discerne na paixão dos pobres e marginalizados
a presença e atualização da paixão de Jesus que continua agonizando na carne e
no grito de seus irmãos e irmãs. Mas vê também nos avanços rumo à instauração
da justiça e da promoção da vida os sinais da ressurreição acontecendo na
história.
Há
ainda uma outra vertente mística no Novo Testamento. Ela é claramente
contemplativa. Ela afirma que tanto o Filho que se encarnou, quanto o Espírito,
têm a ver com o mistério da criação. Eles estão aí presentes, fermentando o
processo de ascensão rumo ao Reino da Trindade. Eles como que recapitulam em si
e no ser humano o universo e lhe dão orientação segura de que convergirá numa
síntese bem-aventurada. Ele também participará da ressurreição de toda a carne.
Por isso há futuro para as estrelas, para as montanhas, para as plantas,
animais e povos.
Se
a mística do seguimento é histórica e das mãos abertas para ação, a mística
crística e espiritual é dos olhos abertos e cósmica. Ela procura a unidade em
todas as diferenças, na medida em que um fio divino perpassa o universo, a
consciência e ação humana para uni-los para frente e para cima, na perspectiva
da suprema síntese com Deus, Ômega da evolução e da criação. Esta mística da
unidade e união é bem testemunhada pela vertente vigorosa que vem dos Padres
gregos (Gregório de Nissa e Gregório Nazianzeno), passa pela tradição
platônica-agostiniana, chega em S. Boaventura com o seu admirável Itinerário da
mente para dentro de Deus, depois culmina com S. João da Cruz (Subida ao monte
Carmelo) e com Santa Teresa D’Ávila (castelo e suas moradas) até desembocar nos
ardorosos textos místicos O meio divino e Ciência e Cristo de Teilhard de
Chardin.
Por
fim, a mística cristã permitiu uma derradeira elaboração da imagem de Deus, a
trinitária e comunional. Deus não é solidão mas comunhão de três divinas
figuras, o Pai, o Filho e o Espírito. Elas são co-existentes e convivem
eternamente sem nenhuma hierarquia entre elas. Se são distintas é para poderem
propiciar a autodoação e a comunhão entre elas. O entrelaçamento entre elas
(pericórese, em linguagem teológica) de vida e de amor é de tal profundidade e
radicalidade que elas se uni-ficam (ficam unas) e constituem um único Deus.
Destarte
a Trindade não é um mistério absurdo, nem uma contradição matemática. É a
suprema expressão da experiência que todos fazemos do amor e da comunhão
humanas. No amor importa sermos distintos e não nos fundirmos. Mas importa
fundamentalmente que a entrega de um ao outro seja de tal ordem que daí surja
unidade suprema. Não basta o frente-a-frente do eu (Pai) e do tu (Filho), pois
se cairia num narcisismo a dois. Decisivo é que o eu e o tu se encontrem num só
(Espírito Santo), como num terceiro que supera o isolamento de cada um. Desta
forma a dialética é perfeita, não apenas de dois termos, mas de três,
distintos, mas sempre entrelaçados.
Assim
a Trindade é a realização utópica daquilo que já se anuncia em nossa
existência, homem-mulher-criança. Melhor: ela se realiza em nossa existência
porque por detrás de nossa vida e do impulso de nosso amor se faz atuante a
paixão das Pessoas divinas. Elas são a melhor comunidade, o protótipo da
sociedade que acolhe as diferenças e, pela comunhão entre os diferentes, cria a
união.
O
mistério comunional de Deus-Trindade não foi fruto do esforço especulativo dos
primeiros pensadores cristãos. De forma quase ingênua e pré-reflexa foi a forma
como os discípulos de Cristo traduziram sua experiência como a figura histórica
de Jesus, o Nazareno. Ele se entendia simplesmente como filho. Relacionava-se
com Deus como o seu Pai. E dele irradiava tanto carisma e força de atração e
convencimento que diziam: ele é habitado pelo Espírito. Portanto, em Jesus
descobrimos o mistério como Pai/Mãe, como Filho/Filha e como Espírito. Para
exprimir esta experiência totalizante criaram, posteriormnente, a expressão
Trindade para dizer: por detrás de tudo, de cada ser, dentro de cada vida e na
dinâmica de cada paixão está um amor e três amantes, uma comunhão e três
sujeitos em relação. Não se multiplica Deus, apenas se descobre a natureza
comunional e relacional do mistério divino.
A
mística judeo-cristã, a despeito da mediocridade das instituições e da preguiça
espiritual da maioria de seus professantes, apresenta-se como uma mística
político-libertadora-contemplativa. Ela não aceita o mundo como está; quer
mudá-lo e reconstruí-lo sobre a base da partilha, da solidariedade, da
fraternidade/sororidade, do trabalho, do lazer, e da veneração face ao mistério
da criação. Empenhar-se nesse propósito significa sentir-se um servidor de Deus
na história, um operador de sua política no mundo que é a instauração do Reino
que se realiza sempre e somente lá onde a partir dos últimos vige a justiça, se
reforça a colaboração, se supera o espírito de vingança, se concretiza o amor e
vai dançando e cantando rumo a suprema integração de todas as coisas por Deus e
com Deus.
Fonte: Boff, Leonardo- Frei Betto. Mística e Espiritualidade, Editora Garamond Ltda., 2000.
Editora Garamond - 208 páginas
As
palavras mística, evocando mistério, caráter incomunicável de uma
realidade ou intenção, e espiritualidade, referida ao que não tem arrimo
na vida material, têm sido associadas à experiência religiosa. A partir
da Teologia da Libertação - que nos anos 70 abriu caminho para a
aproximação entre fé e política - mística, espiritualidade (e
religiosidade, em sentido amplo) passaram a ser consideradas experiência
globalizante, onímoda, que não desvincula espiritualidade e ação, ética
e responsabilidade pelos destinos da pólis, do planeta e da humanidade.
Nessa linha, os autores deste livro dispensam apresentação. Frei Betto e
Leonardo Boff estão entre os fundadores da Teologia da Libertação,
ainda hoje referência para todos os interessados nas relações entre
religião, ética e ação social. Nestas páginas eles articulam teologia,
filosofia, antropologia, política e poética, temas candentes como o
diálogo possível entre fé e ciência, o misticismo oriental, as relações
entre os gêneros, o corpo e a sexualidade, as religiões afrobrasileiras.
'Mística e espiritualidade' apresenta os problemas atuais que marcam as
vivências do cristianismo, da religião de modo geral, e de toda a
humanidade entre os séculos XX e XXI.